O objetivo do blog é divulgar os dispositivos alternativos na rede de Saúde Mental e propagar a ideia da luta antimanicomial. A partir da democratização da psiquiatria, os profissionais de saúde mental visam trabalhar de forma interdisciplinar no âmbito do novo contexto da psiquiatria renovada.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Dignidade para os estranhos no ninho

 
Roseni Pinheiro coordenou o estudo sobre manicômio
No final da década de 1970, chegava ao Brasil o movimento que pregava a extinção dos manicômios e a gradativa reinserção de pacientes psiquiátricos na sociedade. No Rio de Janeiro, na cidade de Niterói, desde o ano passado, uma equipe de pesquisadores do Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde (Lappis) estuda o trabalho dos profissionais do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba (HPJ) junto à população e aos portadores de transtornos mentais na cidade. Sob a orientação de Roseni Pinheiro, enfermeira sanitarista, mestra e doutora em saúde coletiva e professora do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), os pesquisadores Andréa Cardoso de Souza, Ana Paula Guljor, Alan Teixeira Lima e Aluisio Gomes da Silva Jr. desenvolveram um estudo, apoiado pela FAPERJ, que resultou no livro Desinstitucionalização da saúde mental: contribuições para estudos avaliativos, publicado no ano passado. Em entrevista ao Boletim da FAPERJ, a pesquisadora e sua equipe propõem a humanização do tratamento, a reinserção gradativa dos pacientes ao convívio familiar e projetos de geração de renda como forma de promoção da cidadania desses pacientes.

Boletim da FAPERJ: Em linhas gerais, o que foi o movimento de desinstitucionalização da saúde mental no Brasil?
Roseni Pinheiro e equipe Lappis: No final da década de 1970, esse movimento surgiu no país, fortemente influenciado pelo italiano. Iniciou-se com críticas ao modelo racionalista, denominado “problema-solução” e tradicionalmente aplicado à psiquiatria, e cuja bandeira é o respeito à cidadania do doente mental. Seu principal objetivo, a desinstitucionalização do manicômio, constitui-se em transformar as relações de poder entre instituição e sujeitos, ou seja, usuários, profissionais, gestores. E isso implica em discutir as práticas tradicionalmente adotadas no campo da saúde mental. Compreendemos a desinstitucionalização como um processo de desconstrução de conhecimentos e de aparatos constituídos para “dar conta” da loucura. A desinstitucionalização é, sobretudo, um processo ético-político que introduz “novos sujeitos de direitos e novos direitos para os sujeitos”.

Boletim da FAPERJ: O que são os CAPS e qual a importância destes e de outros serviços substitutivos no processo de reforma psiquiátrica no Brasil?
Roseni Pinheiro e equipe Lappis: Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são definidos de acordo com a Portaria nº 336/02, do Ministério da Saúde, como um “serviço ambulatorial de atenção diária que funciona segundo a lógica do território”. O CAPS é o articulador central das ações de saúde mental do município ou do módulo assistencial. Os serviços substitutivos em saúde mental propõem uma intervenção cultural com o objetivo de interferir na produção de um outro imaginário social, no que diz respeito à loucura. Por meio deles a sociedade, que durante toda a existência da psiquiatria aprendeu que o melhor tratamento e encaminhamento destinado ao louco seria o hospital psiquiátrico, está conhecendo outros modos de lidar com a loucura que não a segregação e a exclusão. Esses modos constituem espaços de produção de sujeitos sociais, de produção de subjetividades, de espaços de convivência, de sociabilidade, de solidariedade e de inclusão. Dessa forma, os CAPS assumem um papel estratégico para a transformação das práticas de atenção e de cuidado no campo da saúde mental.

Boletim da FAPERJ: No caso específico do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, Niterói, como foi este processo? Quais foram as principais dificuldades encontradas?
Roseni Pinheiro e equipe Lappis: O processo de desinstitucionalização em curso no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba apresenta dificuldades para sua consolidação. Podemos destacar dois que consideramos relevantes: a inclusão das ações de saúde mental na esfera da atenção básica e a formação de profissionais condizentes com os princípios do SUS e da reforma psiquiátrica. Em síntese, podemos dizer que se torna necessário ampliar e consolidar uma rede de base comunitária e territorial, que promova a reintegração social e a cidadania.

Boletim da FAPERJ: Quais são as principais lições que podemos tirar da experiência em Jurujuba, que sirvam de modelo para outras experiências de reforma manicomial no país?
Roseni Pinheiro e equipe Lappis: A experiência niteroiense tem demonstrado que o hospital psiquiátrico tem uma grande responsabilidade na mudança da atenção em saúde mental. No que antes era visto como lugar vazio de trocas sociais, nos últimos anos, percebe-se um conjunto de modificações no cotidiano dos pacientes. Isso acontece como resultado de uma política que denominamos de “cidadania do cuidado ao paciente psiquiátrico”, que visa à saída dos usuários, a redução de leitos, o tratamento intensivo fora do espaço hospitalar e, principalmente, a mudança de mentalidade que aponta para uma desconstrução do estigma da loucura. Para tanto, busca-se a construção de uma rede integrada de atenção em saúde mental que possibilite tratar em liberdade. O avanço desse processo no HPJ pode ser observado no aspecto de valorização do outro, como alguém que sofre, e não perpetuando o sofrimento ou limitando a vida. Outra evidência é a noção de responsabilização que permeia as práticas dos profissionais, “a de tomar como encargo” o cuidado com o outro. Inova-se ao não produzir o abandono, na medida em que o novo processo de trabalho prima pela adoção de práticas de cuidado. Além disso, o perfil da clientela torna-se objeto de reflexão para a tomada de decisões, a implantação de serviços e o planejamento de ações. Dessa forma, a desmontagem do aparato manicomial – condição ímpar nesse processo – pode ser feita de outras maneiras que não simplesmente a derrubada dos muros que separam o louco, a loucura, do restante da sociedade.

Boletim da FAPERJ: A partir da reforma no HPJ, o que podemos perceber sobre a relação entre esses pacientes e seus parentes?
Roseni Pinheiro e equipe Lappis: A relação dos pacientes com seus familiares, assim como os vínculos com outros segmentos sociais, encontra-se extremamente fragilizada em função dos longos períodos de internação. As pessoas de longa permanência institucional apresentam como característica um alijamento social não apenas marcado pelo estigma da doença, mas também pelas dificuldades impostas por anos de reclusão. A maioria dos pacientes de longa permanência do HPJ possuíam na época de sua internação vínculos afetivos e sociais que foram se deteriorando com o passar do tempo. Uma das propostas do processo de desinstitucionalização do HPJ é a reinserção destas pessoas tanto na família como na sociedade. Trabalha-se para a reconstrução de vínculos sociais e afetivos, permitindo assim outros trânsitos para os usuários na vida social. Para tanto, realizam-se visitas domiciliares no intuito de promover maior aproximação dos usuários com sua família e vizinhança, promove-se atividades na comunidade, incentiva-se o retorno desses usuários aos seus respectivos lares por meio do incentivo do Programa de Volta pra Casa, sendo a família considerada como parte fundamental no processo de cuidado.

Boletim da FAPERJ: No caso específico do HPJ, exemplifique como tem acontecido esta desinstitucionalização do tratamento psiquiátrico dentro da própria instituição?
Roseni Pinheiro e equipe Lappis: As transformações institucionais estão sendo produzidas no interior da própria instituição psiquiátrica trabalhando-se com aquilo que já existe, buscando transformações no nível micro da política de reorientação da atenção em saúde mental. Trabalha-se na perspectiva de garantir que o usuário se torne um cidadão de plenos direitos, mudando-se a natureza da atenção em saúde mental, restituindo recursos e condições materiais, sociais e culturais que tornem possível o difícil exercício de cidadania e de subjetividades ainda que dentro ou a partir de uma instituição hospitalar. A clientela que atualmente habita o hospital é diferenciada daquela anteriormente tutelada no interior das instituições, na maioria das situações abandonada. Atualmente, os usuários são pessoas portadoras de direitos, com projetos terapêuticos singulares e atenção qualificada.

Boletim da FAPERJ: Existe algum exemplo de geração de renda por parte dos pacientes psiquiátricos proveniente do HPJ ou outra instituição em Niterói? Como ele funciona?
Roseni Pinheiro e equipe Lappis: Trabalhar na perspectiva da desinstitucionalização implica criar possibilidades de geração de renda para que os usuários possam manter-se fora do espaço hospitalar, ou ainda, que no interior do hospital possa ter assegurado uma maior variação de trocas sociais.  No atual contexto da reforma psiquiátrica, o trabalho é considerado não mais como uma terapia e sim como um direito, uma condição básica para que se possa estar efetivamente no mundo. O município de Niterói possui um programa de geração de renda que engloba toda a rede de saúde mental. Este programa se subdivide em oficinas de geração de renda e bolsas de trabalho. Em 2006, foi estruturado um Núcleo de Geração de Renda que busca integrar as oficinas realizadas nas diversas unidades da rede. A rede conta atualmente com 35 iniciativas, entre bolsas de trabalho e oficinas, que funcionam em oito serviços e nos Núcleos de Atividades Coletivas e de Geração de Renda. Estão vinculados a essas iniciativas cerca de 200 pacientes e 40 profissionais. Atualmente existem 18 oficinas de geração de renda que incluem a produção de bijuterias, sabonete, velas, artesanato, mosaico, entre outras. Contabilizam quatro bazares abertos a comunidade e três instituições possuem cantina em suas dependências.O programa de bolsa auxílio, instituído em 1995, engloba diferentes atividades realizadas no CAPS Herbert de Souza, Oficinas Integradas e Hospital Psiquiátrico de Jurujuba. Incluem atividades no arquivo, biblioteca, cantina, jornal, limpeza, manutenção, office-boy, recepção, reciclagem e xerox. Cerca de 50 pacientes trabalham em alguma dessas iniciativas e todos recebem por hora trabalhada.

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